junho 14, 2007

Vox Populi

Não importa o tamanho da montanha; ela não pode tapar o Sol.
Provérbio chinês

2 comentários:

mor disse...

Querida F.,
Muitos Parabéns por este dia!!! Aproveitei para te agradecer o facto de não te esqueceres de nenhum aniversário. Incrivel!!!
http://salvem-as-bolhas.blogspot.com/
Que contes muitos felizes e sorridentes!
Um grande beijo

Anónimo disse...

No dia dos teus anos aqui fica um artigo à tua medida ; )
Bjs

Das Pessoas e dos cães

O meu cão tem um medo louco de ser abandonado. Não abandonado de abandonado, ou seja, despejado no meio da rua e de um mundo para o qual não está preparado, mas abandonado no sentido de deixado sozinho. Quando a família sai de casa ou do carro, o cão chora e ladra pedindo que o levem com eles. A choradeira e os latidos e ganidos são tantos que quem passa ao lado pensa que o cão está a ser torturado. Nada, na vida curta deste cachorro, que anda sempre com toda a gente para todo o lado, o pode levar a suspeitar que vai ser abandonado. Pelo contrário, o cachorro tornou-se o centro das atenções e é um ídolo popular entre adultos e crianças, que o mimam excessivamente. Nunca foi deixado para trás, nem esteve num canil. Nunca está sozinho. Observando o seu terror da solidão e do abandono, chego à conclusão que aquele terror e aquele medo devem ser ancestrais, cromossómicos, genéticos, ou o que quer que seja. Ao contrário dos gatos, os cães não apreciam a independência e a solidão e por isso muitas pessoas os preferem aos gatos. Ao contrário dos gatos, as pessoas também não apreciam a independência e a solidão.

Esta é a altura do ano em que as pessoas abandonam os animais. Vão de férias e, antes de partirem, o cachorro que se revelou tão bom companheiro no Inverno passa a empecilho no Verão, sendo deixado, como quem não quer a coisa, num parque da cidade ou numa praia dos arredores. Salta bobi, salta, sai do carro bobi, e o bobi vê pela última vez a cara e as festas dos donos. A única salvação destes bichos abandonados é o apelo das crianças, quando as crianças existem, embora eu ache mau sinal ter crianças quando se é capaz de abandonar um bicho ao Deus dará. Quem abandona um cão, abandona um filho ou um pai. Esta é também a altura do ano em que os velhos são abandonados nos lares de terceira idade, nos hospitais, nos asilos. Paizinho, nós depois voltamos em Setembro, e o paizinho, com os olhos revirados de terror, sabe que está condenado. Uma vez conheci num lar uma velhota que tinha sido lá deixada pela família há mais de doze anos. Pagavam o lar e nunca a visitavam. Tinha a velhota quatro filhos e um ror de netos e nem um deles se dignava aparecer e perguntar como ia indo. A velhota tinha-se resignado ao abandono e, lúcida como estava, contou-me que nem as fotografias da família queria por perto. Tinha deitado os retratos e as molduras fora, não lhe serviam para nada, e o tempo tinha passado, decerto estavam irreconhecíveis. Os netos grandes, os filhos velhos. Doze anos sem ver a mãe, a avó, a tia, a irmã. Doze anos, uma eternidade. A velhota contava isto sem sentimentalismo, as lágrimas estavam secas ao canto do olho vermelhusco, escondido pelas rugas da pele. O meu marido, que Deus tenha, teve mais sorte que eu, morreu cedo, fiquei viúva aos quarenta e tal anos. Nos primeiros tempos tinha ficado à espera, depois habituara-se, nunca mais viriam, nem sequer quando morresse. Os funcionários do lar também se tinham habituado, aquilo estava sempre a acontecer, a velhota não era excepção. A velhota tinha, contudo, a esperança de que um dia os filhos dos filhos dela fizessem o mesmo aos pais deles, para verem como doía.

Os cães não se queixam mas, na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa, nos meses de Junho, Julho e Agosto, os cães são deixados à solta, com coleira, talvez as vacinas em dia, e nenhuma identificação. Alguns são recolhidos pelas oficinas de automóveis da Quinta do Noivo, e por ali andam, perdidos nos primeiros dias, com o pêlo lustroso e lavado e os sinais da raça. Aparece de tudo, sobretudo cães grandes, aqueles que dão mais trabalho e comem mais. Golden retrievers, labradores, pastores alemães, cocker spaniels, lassies e laicas e bobis vários, com e sem pedigree, rafeiros e finaços. Damas e vagabundos. Cães aos quais foi aberta discretamente uma porta do automóvel, a caminho da auto-estrada, na secreta esperança de que não sigam o carro muito tempo ou sejam atropelados pelo próximo carro. Um dos mecânicos, uma boa alma que me contou isto e que, com os colegas de ofício, alimenta e toma conta de vários cães, gastou no outro dia 12 contos no veterinário com uma cadela a que se afeiçoou, abandonada como os outros, e que dorme debaixo dos carros, e aprecia o conforto dos motores quando ainda estão quentes, no tempo frio. A cadela segue-o para todo o lado, no terror de ser abandonada, e ainda tem a coleira que atesta a sua pertença a uma desta saudáveis famílias ou seres humanos que largam os cães na avenida. Os cães acabam uns com os outros, fazendo-se companhia na sorte comum e, provavelmente, congratulando-se por terem escapado das rodas de um camião de longo curso.

Sempre achei que os cães sabiam mais sobre as pessoas do que as pessoas, e que não é preciso ler o livro de Peter Singer, «Animal Liberation», para dar aos animais a capacidade de sofrimento e estatuto moral que tanto lhes queremos negar. Os cães da Quinta do Noivo e de Chelas teriam umas coisas para dizer à velhota do lar, e talvez se entendessem bem. Ao contrário dos cães, os velhotes não podem contar com a generosidade e a compaixão dos mecânicos de automóveis que guardam o saco da ração por baixo da parede enfeitada com aqueles calendários das oficinas, mulheres loiras e seminuas a fazer boquinhas. Ao contrário dos cães, os velhos não estão por sua conta, estão à mercê do mundo, e essa não é uma boa posição na sociedade ocidental, e em particular na sociedade portuguesa actual, que tanto se orgulha do seu católico sentido da família. Uma visita pelos lares, de velhos e de deficientes, durante as férias dos portugueses, é bastante instrutiva sobre a capacidade para amar dos portugueses. E há ainda os profissionais disto, os que quando voltam de férias arranjam outro cão, até ao Verão seguinte.

Por Clara Fereira Alves no "Única" - Expresso de 13 de Agosto de 2005