abril 21, 2006

Sem olhar para trás

Ura, Canil de Macau, Novembro 2003

"O meu cão tem um medo louco de ser abandonado. Não abandonado de abandonado, ou seja, despejado no meio da rua e de um mundo para o qual não está preparado, mas abandonado no sentido de deixado sozinho. Quando a família sai de casa ou do carro, o cão chora e ladra pedindo que o levem com eles. A choradeira e os latidos e ganidos são tantos que quem passa ao lado pensa que o cão está a ser torturado. Nada, na vida curta deste cachorro, que anda sempre com toda a gente para todo o lado, o pode levar a suspeitar que vai ser abandonado. Pelo contrário, o cachorro tornou-se o centro das atenções e é um ídolo popular entre adultos e crianças, que o mimam excessivamente. Nunca foi deixado para trás, nem esteve num canil. Nunca está sozinho. Observando o seu terror da solidão e do abandono, chego à conclusão que aquele terror e aquele medo devem ser ancestrais, cromossómicos, genéticos, ou o que quer que seja. Ao contrário dos gatos, os cães não apreciam a independência e a solidão e por isso muitas pessoas os preferem aos gatos. Ao contrário dos gatos, as pessoas também não apreciam a independência e a solidão.
Esta é a altura do ano em que as pessoas abandonam os animais. Vão de férias e, antes de partirem, o cachorro que se revelou tão bom companheiro no Inverno passa a empecilho no Verão, sendo deixado, como quem não quer a coisa, num parque da cidade ou numa praia dos arredores. Salta bobi, salta, sai do carro bobi, e o bobi vê pela última vez a cara e as festas dos donos. A única salvação destes bichos abandonados é o apelo das crianças, quando as crianças existem, embora eu ache mau sinal ter crianças quando se é capaz de abandonar um bicho ao Deus dará. Quem abandona um cão, abandona um filho ou um pai. Esta é também a altura do ano em que os velhos são abandonados nos lares de terceira idade, nos hospitais, nos asilos. Paizinho, nós depois voltamos em Setembro, e o paizinho, com os olhos revirados de terror, sabe que está condenado.Uma vez conheci num lar uma velhota que tinha sido lá deixada pela família há mais de doze anos. Pagavam o lar e nunca a visitavam. Tinha a velhota quatro filhos e um ror de netos e nem um deles se dignava aparecer e perguntar como ia indo. A velhota tinha-se resignado ao abandono e, lúcida como estava, contou-me que nem as fotografias da família queria por perto. Tinha deitado os retratos e as molduras fora, não lhe serviam para nada, e o tempo tinha passado, decerto estavam irreconhecíveis. Os netos grandes, os filhos velhos. Doze anos sem ver a mãe, a avó, a tia, a irmã. Doze anos, uma eternidade. A velhota contava isto sem sentimentalismo, as lágrimas estavam secas ao canto do olho vermelhusco, escondido pelas rugas da pele. O meu marido, que Deus tenha, teve mais sorte que eu, morreu cedo, fiquei viúva aos quarenta e tal anos. Nos primeiros tempos tinha ficado à espera, depois habituara-se, nunca mais viriam, nem sequer quando morresse. Os funcionários do lar também se tinham habituado, aquilo estava sempre a acontecer, a velhota não era excepção. A velhota tinha, contudo, a esperança de que um dia os filhos dos filhos dela fizessem o mesmo aos pais deles, para verem como doía.
Os cães não se queixam mas, na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa, nos meses de Junho, Julho e Agosto, os cães são deixados à solta, com coleira, talvez as vacinas em dia, e nenhuma identificação. Alguns são recolhidos pelas oficinas de automóveis da Quinta do Noivo, e por ali andam, perdidos nos primeiros dias, com o pêlo lustroso e lavado e os sinais da raça. Aparece de tudo, sobretudo cães grandes, aqueles que dão mais trabalho e comem mais. Golden retrievers, labradores, pastores alemães, cocker spaniels, lassies e laicas e bobis vários, com e sem pedigree, rafeiros e finaços. Damas e vagabundos. Cães aos quais foi aberta discretamente uma porta do automóvel, a caminho da auto-estrada, na secreta esperança de que não sigam o carro muito tempo ou sejam atropelados pelo próximo carro. Um dos mecânicos, uma boa alma que me contou isto e que, com os colegas de ofício, alimenta e toma conta de vários cães, gastou no outro dia 12 contos no veterinário com uma cadela a que se afeiçoou, abandonada como os outros, e que dorme debaixo dos carros, e aprecia o conforto dos motores quando ainda estão quentes, no tempo frio. A cadela segue-o para todo o lado, no terror de ser abandonada, e ainda tem a coleira que atesta a sua pertença a uma destas saudáveis famílias ou seres humanos que largam os cães na avenida. Os cães acabam uns com os outros, fazendo-se companhia na sorte comum e, provavelmente, congratulando-se por terem escapado das rodas de um camião de longo curso.
Sempre achei que os cães sabiam mais sobre as pessoas do que as pessoas, e que não é preciso ler o livro de Peter Singer, «Animal Liberation», para dar aos animais a capacidade de sofrimento e estatuto moral que tanto lhes queremos negar. Os cães da Quinta do Noivo e de Chelas teriam umas coisas para dizer à velhota do lar, e talvez se entendessem bem. Ao contrário dos cães, os velhotes não podem contar com a generosidade e a compaixão dos mecânicos de automóveis que guardam o saco da ração por baixo da parede enfeitada com aqueles calendários das oficinas, mulheres loiras e seminuas a fazer boquinhas. Ao contrário dos cães, os velhos não estão por sua conta, estão à mercê do mundo, e essa não é uma boa posição na sociedade ocidental, e em particular na sociedade portuguesa actual, que tanto se orgulha do seu católico sentido da família. Uma visita pelos lares, de velhos e de deficientes, durante as férias dos portugueses, é bastante instrutiva sobre a capacidade para amar dos portugueses. E há ainda os profissionais disto, os que quando voltam de férias arranjam outro cão, até ao Verão seguinte."

Ura é a minha estrela desde um dia de Outubro de 2004.

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